- Fica comigo esta noite.
- Fiquei ontem. Divertimo-nos. Lembras-te?
- Claro que sim! Mas hoje preciso mais. Fica, peço-te.
- E que farei eu aqui, sabes-me dizer?
- Fazias-me companhia. Não vês como estou só?
- Acaso alguma vez me viste com alguém assim, como tu te sentes hoje?
- Não, isso é verdade, mas contigo eu mudo.
- Acho que não. Vou andando.
- Espera! Não vás. Podias dançar para mim. Eu ouvia-te cantarolar enquanto rodopiavas, seguia as sombras caprichosas do teu vulto e sorria. Admirava os movimentos do teu corpo descalço reflectidos no esvoaçar do teu vestido amplo e branco numa imagem de…
- E choravas!
- Não, prometo que não. Se ficares eu juro que não.
- Conheço esse olhar. Sabes que não nasci para isto. Nasci para cantar, sorrir, dançar, saltar, divertir-me, rir, admirar o belo, ser alegre. Que mal há nisso?
- Absolutamente nenhum! Por isso me fazes bem.
- A minha finalidade é viver, não é consolar.
Hoje não é meu dia de ficar. Fala com a Santa Bondade ou a D. Compreensão. Elas sim estão bem para ti.
Agora desculpa, mas vou mesmo sair.
Fechou a porta atrás de si e foi embora a Maria Alegria.
Ficou o silêncio.
Olhei para o lado, vi a Santa Bondade que deitada dormitava. Não me atrevi a incomodá-la.
O eco violento devolveu-me as palavras – “E choravas!”.
Levantei-me de rompante, rapidamente percorri a meia dúzia de passos que me levaram à janela aberta.
- Pois agora não choro! É que não choro mesmo! Nem que eu tenha que partir a loiça toda, mas nem uma lágrima sequer há-de assomar aos meus olhos.
Da rua chegou-me o ar fresco e um pouco húmido da noite. Arrepiei-me e de certo modo acordei.
Nem que eu parta a loiça toda – pensei.
Que prazer me daria agarrar nos pratos de tantos anos e atirá-los janela fora, ouvi-los estilhaçarem-se em mil pedaços na rua.
Uma a uma acender-se-iam as luzes das casas e cabeças espreitariam querendo perceber o que se passava.
Talvez chamassem a polícia pensando tratar-se de violência doméstica, ou me apelidassem de louca por aquele acto isolado.
Porque não podemos fazer coisas diferentes sem sermos logo catalogados?
Além disso trazer-me-ia um outro prazer. Ter um novo look na minha loiça.
Doida não estou ainda, mas talvez não falte muito reflecti, pois não consigo deixar de pensar em quanta satisfação esse acto me traria.
Será normal?
Normal? Que convenções nos atiram ou afastam da normalidade?
Ser normal é não ser livre.
Mas a minha liberdade acaba onde começa a liberdade dos outros.
Devo então sentir-me prisioneira?
O relógio bateu as duas horas da madrugada e lá no céu a Lua piscou-me o olho.
Foi então que compreendi e desatei a rir à gargalhada.
- Eu logo vi que já eram horas das filosofias baratas e de alucinações.
E enquanto ria divertida do ridículo dos meus pensamentos, ouvi bater à porta.
Não abri, nem espreitei para ver quem era.
Disse apenas:
- Estou bem. Agora não preciso de ti. Já parti a loiça toda.
Mafalda, 15 de Julho de 2010
(foto da net)
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