Olhei-te e vi-te.
Teu olhar azul ansioso, teu rosto reflectido num meio sorriso assustado.
Puxaste dum cigarro e acendeste-o com mãos trémulas.
E com a voz, que me pareceu embargada, disseste:
- Deixa-me só fumar um cigarro.
A seguir buscaste uma caixinha e dela retiraste um pequeno comprimido.
Partiste-lhe um bocadinho que engoliste. Eu sei o que são e nada comentei.
Tudo isto eu vi e desviei um pouco o meu olhar humedecido para que não notasses.
Apeteceu-me tanto abraçar-te e dizer-te “estou aqui, é só um corte de cabelo, não dói!”.
Mas contive o meu impulso com medo de te embaraçar.
Terei feito bem ou mal?
Embaraçar-te-ia ou ter-te-ia consolado?
Não é meu hábito conter meus impulsos. Na maior parte dos casos não chego a ter tempo para isso.
Mas contigo já notei é mais natural. Talvez porque costumas “sacudir” manifestações de carinho em momentos de “crise”.
Tínhamos andado toda a tarde e já tínhamos resolvido alguns assuntos que tu próprio te tinhas proposto. No entanto apesar de decidido, ainda quiseste voltar atrás e deixar para outro dia. Achei que devia impor-te a decisão e de uma maneira, que tentei ser suave, encorajei-te a cumprir o “calendário”.
Mas por último, outro desafio desafiava a tua confiança em ti próprio. Estavas prestes a sucumbir. Acompanhei-te a vencê-lo e assim o fizeste.
E como ficaste bonito com teu novo corte de cabelo!
Sei o que doem as tuas dificuldades e imagino que terá sido um dia difícil. Mas confessa foi uma vitória!
Olhei-te com ternura como quando nasceste!
E vi-te tão menino e assustado!
Não foi assim que te vi quando nasceste!
Onde será que terei errado se tanto te amo!
Mafalda, 26 de Abril de 2008
Hoje é dia 1 de Abril. Um dia do ano particularmente peculiar. Ele é chamado o “Dia das Mentiras”.
É verdade neste dia de longa tradição, entretemo-nos a inventar mentiras que contamos uns aos outros como verdades absolutas. Tentamos ser originais e ao mesmo tempo transmitir um cunho de veracidade para não sermos imediatamente descobertos e ter o prazer de no dia seguinte desmentir o que afirmámos com tanta convicção.
E a esta tradição, nem escapam, por exemplo, os próprios orgãos de comunicação como as estações de rádio, televisão e mesmo a imprensa através dos jornais, inventando uma notícia que anunciam ou publicam, sobre os mais variados assuntos.
E nós que seguimos as notícias, quer ouvidas ou lidas, tentamos adivinhar qual será a mentira do dia.
É pois o dia oficial da mentira, o dia que podemos pregar partidas uns aos outros, que podemos mentir à vontade sem ser pecado.
Às vezes há pessoas que não têem muito bom senso e se atrevem a inventar coisas com as quais não devemos brincar. Sim porque tudo não passa duma brincadeira e não é de bom tom brincar com os sentimentos de cada um.
Mas a vida prega-nos partidas de verdade e na sequência do que anteriormente disse, quando elas acontecem neste dia em que duvidamos do que nos contam, temos alguma dificuldade em fazer acreditar os outros das más notícias.
Foi assim há quinze anos atrás, quando precisamente neste dia partiste. Partiste e nos deixaste a todos sós.
Era tão difícil de acreditar que quando dava a notícia, as pessoas incrédulas voltavam a perguntar.
Lembro bem que eu própria repetia incessantemente dentro de mim “isto não me está a acontecer...isto não me está a acontecer”.
Relembro muitas vezes esse dia. A tua partida são imagens que jamais esquecerei e ainda hoje permanecem nitidas.
Tanto me deste ao longo do tempo!
Tanto gostarias de me dar ainda!
Tanto sonhavas para nós!
Porquê então? Não entendi. Não compreendo ainda.
E uma ponta de sentimento de culpa é ainda minha companheira.
Será que fiz tudo o que devia, podia?
Desde então todos os dias Um de Abril te visito.
Com excepção do ano passado. Tinha um compromisso.
A minha irmã Bete veio ter comigo porque eu tinha de estar em casa à espera que uma empresa viesse levantar um equipamento.
Ela nada comentou, talvez tenha pensado que não me havia lembrado que era o dia da tua visita.
E eu, durante o ano que decorreu até hoje, muitas vezes me interroguei se o tal compromisso, teria sido uma desculpa. Estaria eu cansada já de te visitar? Como iria ser o dia de hoje? Haveria também algum outro compromisso?
Por nada deste mundo gostaria que isso acontecesse e não me perdoaria. Estas expectativas assustavam-me e criavam-me ansiedade. Sentia plena certeza que o tal compromisso tinha sido real, mas mesmo assim era fundamental que o provasse a mim própria.
Levantei-me e arranjei-me cuidadosamente. Saí sózinha sentindo-me tranquila, e sem qualquer exitação. Estava finalmente serena sabendo bem o que queria e conduzindo o carro dirigi-me à florista.
Levo-te sempre flores. Sei que gostas. Rosas vermelhas, símbolo de paixão, eram as tuas preferidas.
Para mim Orquedeas, tão sensíveis e delicadas. E não é pelo facto de teres partido que as não mereces.
Um dia, um dia qualquer eu sei, também eu me mudarei para o lugar onde agora vives.
Mas sabes uma coisa? Pelo que me tem sido dado observar, ao contrário de ti, não haverá ninguém que me visite e me leve flores, quaisquer que sejam e de que eu tanto gosto.
Hoje visitei-te como sempre tenho feito.
Hoje visitei-te e continuarei a fazê-lo enquanto me fôr possível.
Hoje visitei-te na tua última morada.
Mafalda, 1 de Abril de 2008
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